segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Escrito por em 27.11.17 com 0 comentários

A Ilha do Dr. Moreau

H.G. Wells é um dos meus escritores preferidos. Seus dois livros dos quais eu mais gosto são A Máquina do Tempo, que li pela primeira vez quando era criança, e A Ilha do Dr. Moreau, pelo qual confesso que só me interessei após ver uma de suas adaptações cinematográficas, quando já era adolescente. Sobre A Máquina do Tempo eu já falei aqui, num post, inclusive, em que aproveitei para falar sobre a vida do próprio Wells; sobre A Ilha do Dr. Moreau... bem, acho que já está bem claro que eu vou falar hoje.

A Ilha do Dr. Moreau foi o segundo livro escrito por Wells - com o primeiro tendo sido, ora vejam só, A Máquina do Tempo. Wells era formado em zoologia, e, no final do século XIX, dava aulas de biologia na Henley House School, em Londres. Na época, ocorria na sociedade científica um acalorado debate sobre vivissecção animal - o ato de abrir animais vivos para estudar o que havia dentro deles - e sobre a teoria da degeneração social, segundo a qual a sociedade estava em declínio, e dentre as causas estavam fatores biológicos - basicamente, segundo essa teoria, "defeitos" como preguiça e devassidão eram transmitidos hereditariamente, e, como os "defeituosos" tinham mais filhos, seus números na sociedade aumentavam mais que os dos "não-defeituosos", o que, inevitavelmente, levaria a um colapso social; vale citar que essa teoria estava no cerne de outras como a eugenia, que pregava que somente pessoas "não-defeituosas" deveriam procriar. Além dessas duas discussões, a Teoria da Evolução de Charles Darwin ganharia força dentre os cientistas, com vários artigos que a abordavam sendo publicados - alguns a favor, outros contra.

Dentro desse cenário, em 1895, Wells publicaria um artigo chamado The Limits of Individual Plasticity, no qual dizia acreditar que um animal poderia ser modificado através de cirurgias ou compostos químicos até assumir uma aparência completamente diferente, mas que as crias desse animal não incorporariam essas mudanças, mantendo sua forma original. Ele também discutiria o fato de que qualquer mudança assim obtida seria apenas na aparência do animal, incapaz de mudar sua assinatura genética, o que hoje conhecemos como DNA. Não se sabe se paralelamente ao artigo, ou se motivado por ele, Wells logo começaria a trabalhar em uma história centrada nesse conceito, que seria publicada no ano seguinte, 1896, pela editora Heinemann, a mesma de A Máquina do Tempo.

O livro é escrito como se fosse um relato de Edward Prendick, inglês que sobreviveu a um naufrágio no Oceano Pacífico, sendo resgatado por um navio que passava, que transportava vários animais a pedido de um misterioso homem chamado Montgomery, que viaja acompanhado de seu servo M'ling - sendo os dois os únicos no navio, além de Prendick, que não pertencem à tripulação. Montgomery está levando os animais para uma ilha do Pacífico que não consta em nenhum mapa, e, ao chegar lá, o capitão do navio decide que não quer levar Prendick consigo, deixando-o na ilha junto com Montgomery, M'link e os animais. Sem escolha, Montgomery leva Prendick até o dono da ilha, um cientista conhecido como Dr. Moreau - a quem Prendick reconhece como tendo sido expulso da comunidade acadêmica de Londres devido a seus experimentos com vivissecção.

Ao bisbilhotar o laboratório do Dr. Moreau, Prendick chega à conclusão de que ele está praticando vivissecção em humanos, presumindo que suas cobaias sejam os nativos da ilha, e teme que ele possa ser a próxima vítima. Ao vagar pela ilha, porém, ele encontra estranhos híbridos de homens e animais, e, Moreau acaba lhe revelando a verdade: há mais de uma década, ele vem fazendo experimentos em animais, visando transformar um animal em um ser humano - M'ling, inclusive, é um desses experimentos - sendo que, até hoje, não obteve sucesso total, já que, após algum tempo, os animais revertem a seu comportamento feral, apesar de manter a aparência transformada. Prendick acaba decidindo ficar na ilha e ajudar Moreau, mas um acontecimento inesperado fará com que ele tente retornar à Inglaterra a qualquer custo.

O livro seria um sucesso moderado de público, mas se tornaria um dos maiores clássicos da ficção científica, tendo sido um dos primeiros a trazer o conceito do "cientista louco" que se isola do mundo para conduzir seus experimentos, e o primeiro no qual uma inteligência superior se utiliza da ciência para modificar uma inteligência inferior de acordo com seu bel-prazer, algo que seria muito abordado em histórias futuras, mas envolvendo temas como abdução alienígena e engenharia genética.

A Ilha do Dr. Moreau também daria origem a três adaptações para o cinema. A primeira, em preto e branco, seria produzida pela Paramount, dirigida por Erle C. Kenton, e estrearia em 12 de dezembro de 1932, com o título de A Ilha das Almas Perdidas (Island of Lost Souls no original). Uma das maiores curiosidades sobre esse filme é que seus roteiristas foram Waldemar Young e Phillip Wyle, esse último considerado, assim como Wells, um dos maiores autores de ficção científica de todos os tempos, autor de Gladiator, que teria sido uma das inspirações de Joe Shuster e Jerry Siegel ao criar o Super-Homem, e de When Worlds Collide, considerado um dos maiores clássicos do gênero.

O filme começa bem fiel ao livro, mas logo toma um rumo diferente, inclusive com a inclusão de duas personagens femininas. Nele, o inglês Edward Parker (Richard Arlen) sofre um naufrágio e é resgatado por um navio onde viajam o misterioso Sr. Montgomery (Arthur Hohl) e seu servo M'ling (Tetsu Komai), que levam uma carga de animais para uma estranha ilha do pacífico. Parker manda uma mensagem via telégrafo para sua noiva, Ruth Thomas (Leila Hyams), avisando que está a bordo do navio, mas, quando chega à ilha, se desentende com o capitão (Stanley Fields), que decide deixá-lo lá. Parker, então, é apresentado por Montgomery ao dono do local, o Dr. Moreau (Charles Laughton), cientista que decidiu se isolar do mundo para conduzir melhor seus experimentos. Moreau apresenta Parker à misteriosa Lota (Kathleen Burke), e, por algum motivo, parece desejar que os dois se tornem um casal.

Com o tempo, Parker descobre a verdade sobre a ilha: os experimentos de Moreau envolvem transformar animais em seres humanos, e a própria Lota, originalmente, era uma pantera, com o cientista desejando que ela e Parker tenham um relacionamento para provar que o experimento foi um sucesso. Paralelamente a isso, o navio chega a seu destino, e Ruth, ao ver que Parker não está nele, e descobrir que ele foi deixado na ilha, convence o Capitão Donahue (Paul Hurst) a levá-la até lá. Ruth e Donahue chegam bem em meio a uma revolta dos experimentos (cujo líder é interpretado por Bela Lugosi, de Drácula), que mudará o destino da ilha para sempre.

O filme foi um grande sucesso de público, e uma de suas falas ("os nativos estão inquietos essa noite") se tornou uma das mais famosas do cinema, sendo repetida incontáveis vezes, como homenagem ou paródia. Wells, entretanto, não gostou do filme, considerando que o diretor deu muito foco ao clima de terror, deixando de lado a crítica social e os questionamentos filosóficos que, segundo ele, eram o cerne de sua história. Vale citar também que, graças a esse clima de terror, em especial às cenas de vivissecção - e a uma cena na qual Moreau pergunta a Parker se ele "sabe como é se sentir como um deus" - o filme seria banido no Reino Unido, somente estreando nos cinemas de lá, em uma versão bastante editada, em 1958.

A segunda versão seria produzida pela American International Pictures, dirigida por Don Taylor, e estrearia em 13 de julho de 1977, com o mesmo título do livro, A Ilha do Dr. Moreau. Essa segunda versão toma ainda mais liberdades que a primeira, e começa com três sobreviventes de um naufrágio, dentre eles o engenheiro Andrew Braddock (Michael York), chegando a uma estranha ilha no Caribe após 17 dias à deriva no mar. Lá, dois dos náufragos são mortos por ataques de animais, mas Braddock é salvo pelo dono da ilha, o Dr. Moreau (Burt Lancaster), e levado à sua casa, onde conhece seus empregados, o mercenário Montgomery (Nigel Davenport), o animalesco M'ling (Nick Cravat) e a bela Maria (Barbara Carrera). Moreau trata Braddock muito bem, e inclusive permite que ele usufrua da casa como se fosse sua, mas o adverte de que ele jamais deve sair à noite. Um dia, desrespeitando as ordens, Braddock vê Moreau e Montgomery conduzindo uma criatura estranha a seu laboratório, e, ao percebê-lo, o cientista revela a verdade: ele injeta nos animais da ilha um soro que contém DNA humano, tentando transformá-los, também, em seres humanos, já tendo obtido vários graus de sucesso - alguns, depois de um tempo, voltam a ser animais, mas outros, como Maria (que Braddock não sabe ser um dos experimentos), se tornam humanos perfeitos. Braddock se convence de que Moreau é insano, e planeja fugir da ilha levando Maria, o que não se mostrará nada fácil.

O filme seria bem recebido pela crítica, que elogiaria principalmente as atuações de Lancaster e York; o público, por outro lado, não corresponderia, e a AIP consideraria o filme um fracasso. Uma curiosidade sobre esse filme é que, assim como Lota no primeiro, Maria é na verdade uma pantera; no final original escrito para o filme, ela engravida de Braddock e dá à luz, ao invés de um bebê, um gatinho. Taylor, entretanto, se recusou a levar esse final a sério, e sequer chegou a filmá-lo, somente gravando o final do filme após sua alteração.

Em 1990, o diretor sul-africano Richard Stanley, que havia lido o livro quando criança, decidiria tentar realizar seu sonho de dirigir um filme baseado nele, e começaria a escrever um roteiro. Ele passaria quatro anos desenvolvendo o projeto antes de apresentá-lo à New Line Cinema, que daria a luz verde em 1994. Desde que começou o projeto, Stanley pensava no ator Jürgen Prochnow (de Duna e Força Aérea Um) para o papel de Moreau, mas a New Line, sem consultá-lo, contrataria Marlon Brando. Após essa contratação, Stanley ouviria um boato de que Brando havia sido convidado porque a New Line planejava que ele (Stanley) não fosse o diretor, e sim Roman Polanski, e decidiria se encontrar com Brando, que ficaria do seu lado e convenceria o estúdio a deixá-lo dirigir. Com a ajuda de Brando, Stanley também conseguiria trazer dois outros nomes de peso para a produção: Bruce Willis para o papel de Prendick, e James Woods para o de Montgomery, além do mago dos efeitos especiais Stan Winston para criar a maquiagem dos híbridos.

O que parecia um sonho, entretanto, logo se tornaria um pesadelo. Pouco antes de as filmagens começarem, Willis desistiria do papel sem maiores explicações, e seria substituído por Val Kilmer. Para aceitar o papel, porém, Kilmer exigiria uma redução de 40% no número de dias de filmagem em que deveria estar presente. Para solucionar esse problema, Stanley colocaria Kilmer no papel de Montgomery, o que criaria um novo problema, já que o estúdio achava Woods velho demais para interpretar Prendick. Woods, então, seria dispensado, e, para o papel de Prendick, seria convidado Rob Morrow, da série Northern Exposure. Com o problema de elenco resolvido, as filmagens começariam, mas, pouco depois, a filha de Brando se suicidaria e ele se ausentaria das filmagens antes mesmo de gravar sua primeira cena, sem dar uma data para retornar.

Durante as filmagens, Kilmer se comportaria de modo extremamente desagradável, se recusando a dizer as falas do jeito que estavam escritas, criticando Stanley e os colegas de elenco abertamente, e não aparecendo para gravar as cenas nos horários previstos. No segundo dia de filmagens, uma tempestade impediria as gravações, e Morrow, insatisfeito com o clima tenso, pediria para deixar o filme. No terceiro dia, a New Line enviaria ao set um fax. No qual demitia Stanley do cargo de diretor.

Para o lugar de Stanley, o estúdio contrataria o veterano John Frankenheimer, que se aproveitaria do momento de desespero da New Line para exigir um salário altíssimo e um contrato para dirigir não um, mas três filmes. Frankenheimer traria o ator David Thewlis para o lugar de Morrow, e pediria que seu colaborador de longa data Ron Hutchinson reescrevesse o roteiro - Stanley, entretanto, continuaria creditado como co-autor. Para que todas essas mudanças pudessem ser implementadas, as filmagens seriam interrompidas por uma semana e meia. Como elas ocorriam na Austrália, todo esse furdunço aumentaria o orçamento do filme em nada menos que 70 milhões de dólares em relação à estimativa inicial.

E os problemas não acabariam com a chegada de Frankenheimer. Brando se comportaria cada vez mais como uma diva, se recusando a sair de seu trailer até o último momento possível para filmar suas cenas, e frequentemente entrava em conflito com Kilmer - a partir de um determinado momento, ambos só aceitavam sair de seus respectivos trailers depois que o outro tivesse saído, o que atrasava as gravações em horas. Frankenheimer também ficaria cada vez mais irritado com Kilmer, prometeria jamais trabalhar com ele novamente, e, ao final da gravação de sua última cena, disse a seu assistente: "ótimo, agora tire esse bastardo da minha frente". Thewlis frequentemente reescrevia suas falas, pedindo, inclusive, para que seu personagem passasse a se chamar Edward Douglas, e Brando se recusava a decorar as dele, usando um rádio para que um assistente as passasse para ele pouco antes de ele dizê-las - diz a lenda que, um dia, esse rádio pegou a frequência da polícia, e Brando disse "há um roubo em andamento na Woolworth's", no meio de uma cena.

O estúdio também ficaria muito preocupado que Stanley, que ficou na Austrália após ser demitido, pudesse tentar sabotar o filme; na verdade, ele faria um acordo com um dos contra-regras, que o ajudaria a entrar escondido no set e, durante vários dias, interpretaria um híbrido de homem e cachorro, sem que ninguém soubesse que era ele.

No fim, as filmagens, que estavam previstas para seis semanas, levariam seis meses, com o elenco e a equipe chegando esgotados ao final. A New Line registraria o orçamento do filme como sendo 40 milhões de dólares, mas estima-se que ela tenha gasto cerca de cem milhões a mais que isso. O pior é que todo esse esforço não adiantaria nada: a bilheteria mundial do filme seria de 49 milhões de dólares, o que, mesmo que o orçamento tivesse sido 40, se configuraria como um tremendo fracasso. Os críticos também receberiam muito mal o filme, considerado o pior da carreira de Brando e um dos piores de todos os tempos.

O filme é ambientado em 2010, e começa com um avião que leva Edward Douglas (Thewlis), um negociador da ONU, caindo no Mar de Java e sendo resgatado por Montgomery (Kilmer) em um bote. Montgomery promete levar Douglas até Timor, mas faz uma escala no caminho em uma ilha não-mapeada, onde tem que entregar um carregamento de coelhos. Lá, Douglas conhece a bela Aissa (Fairuza Balk), que diz ser filha do Dr. Moreau (Brando), cientista que se isolou do mundo para fazer experimentos de engenharia genética combinando DNA humano e animal, visando criar uma raça incapaz de causar dano a seus semelhantes. Moreau ainda não obteve sucesso, e controla seus híbridos - dentre os quais há um homem-leopardo interpretado por Marc Dacascos e um homem-bode interpretado por Ron Perlman - através de um chip em sua pele que lhes causa uma grande dor se Moreau apertar um botão em um controle remoto. Sem que Moreau saiba, porém, há dentre os híbridos um mutante (Daniel Rigney), que pretende destroná-lo e libertar todos os demais.

O terceiro filme realmente é bem ruim, mas teve pelo menos um mérito: me fez ler o livro pra ver se era ruim também. Felizmente, não é, muito pelo contrário. Portanto, se vocês quiserem conhecer o verdadeiro Dr. Moreau, leiam o livro.

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